O jornalista catarinense Lemyr Martins acompanha o circo da Fórmula 1 desde 1970.
Iniciou sua carreira em 1964 no Jornal Zero Hora.
Passou pelo Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, O Estado de S.Paulo,
e pelas revistas Placar e Grid.
Atualmente, é repórter e colunista da revista Quatro Rodas.
Confira abaixo texto do autor de Os Arquivos da Fórmula 1 :


Livros publicados:
Os Arquivos da Fórmula 1
Uma Estrela Chamada Senna

Gaúcho voador

Mal tinha colocado o cinto e me ajeitado no banco do avião, recebi a ordem:
"Segure o manche".
Firmei a alavanca junto à perna esquerda e fiquei controlando os movimentos do piloto.
Ele virou a chave, o motor VW-Santana 2000 respondeu e o Guapo começou a deslizar sobre a superfície de saibro vermelho.Chegamos na cabeceira da pista, ele me olhou de soslaio, tomou o manche, deu mais gás no motor e o nosso avião elevou-se suave.
Decolamos, e em 21 segundos a pista era uma referência rubra no meio do pampa verde.
Senti-me leve, feliz e poderoso, planando numa imensidão azul e comecei a entender a paixão por aviões de Altair Coelho, um gaúcho de Pelotas, engenheiro-inventor de 70 anos, que há meio século se diverte imaginando formas de flutuar nos céus do Rio Grande do Sul.
Formado em engenharia mecânica na Alemanha, brevetado desde 1950, aos 16 anos e voando desde os 14, Coelho já decolou em planadores, girocóptero, hidrogiro anfíbio e nos dezoito aviões projetado e construído por ele. O repertório de pardal começou muito antes de ser engenheiro com o girocóptero - máquina com rudimentos de asa sustentada por hélice.
A primeira decolagem, tentada na cidade gaúcha de Livramento, limítrofe de Rivera, no Uruguai, foi inesquecível.Como o girocóptero não tinha motor, a decolagem foi a reboque de um Fusca, preso a uma corda que seria solta por um amigo, após a operação. Quando o aparelho saiu do chão o amigo incrédulo extasiou-se e aos gritos de ... "voou"... largou a corda antes de atingida a altura suficiente e o girocótpero desabou. Mas tudo ficou no susto, Coelho motorizou a sua primeira nave fez outros vôos de cinco minutos com sucesso.

Em seguida veio o primeiro aeroplano, impulsionado por um motor VW 1200 preparado, também construído em Livramento, mas voou de contrabando, numa pista uruguaia.
Tudo porque autoridades da aviação brasileira vetaram o avião, exigindo que a fuselagem tivesse um parafuso de bronze a cada duas polegadas.
Embora essa história tenha acontecido há 45 anos, Coelho ainda zomba da exigência lembrando que o seu aviãozinho aumentaria muito dos 228 quilos e não sairia do chão.
Quando Altair foi para a Alemanha ("a convite" da revolução de 1964, que via na sua condição de ex-presidente da UNE um perigoso ativista contra o golpe) já tinha criado quatro objetos voadores.

Abriu a série com o AC-1 (Altair Coelho-1) - um girocóptero com jeitão de brinquedo - de fuselagem em tubo de aço, amortecedores rígidos, freios de motocicleta, motor VW 2100, 75 hps, 3,10 metros, de 162 kg e velocidade cruzeiro de 120 km/h.
Decolou em 1960 e voou 150 horas antes ser de desmontado para aproveitar peças. O nonoplano AC-3 lembrava o 14 Bis.
Uma beleza de simplicidade feito em treliça tubulares que pesava 130 kg voava até 130 km/h, no qual Coelho gastou 1 600 horas para projetar e construir e voou 15 horas em 1963.

Outra obra fantástica é AC-7, o "Thar-eco", feito com sobras dos girocópteros.Um monoposto no qual o piloto ficava exposto atrás do painel de instrumentos e que tinha a cauda e leme ligados por tubos, sem fuselagem. Foi um modelo que realmente propiciava a sensação de voar.
Também faz parte das invenções de Coelho um hidrocóptero, estranho anfíbio que decolava rebocado por lancha e depois foi motorizado.Ao todo ele construiu 14 AC, - O 16º está na linha de montagem no seu estúdio - e vários desses engenhos figuram na Enciclopédia da Aviação Brasileira e na similar norte- americana.

Altair Coelho não é exatamente loquaz, mas trai-se pelo entusiasmo quando fala do Brasinha, do Ludic, ou do Guapo, Vega e Aragano, os AC modernos que ele batizou como filhos que nunca teve. Comenta-os com carinho e às vezes escapa certa onipotência pelo orgulho de ter dado vida àqueles seres alados.No ar Coelho é silencioso. Passa a impressão que o roteiro é decidido pelo avião, tal a cumplicidade entre criador e criatura. Estar no céu é a sua praia.Mas, projetar e construir um novo avião é a maior realização, e o primeiro vôo o desafio mais esperado.

"É igual a uma noite de núpcias, porque nunca se sabe o que vai acontecer", compara Coelho. Para ele, a expectativa atiça o gozo, mas basta que seja bom pros dois, para que volte o desejo de partir imediatamente para o outro projeto que está já na cabeça.É essa atração que mantém Altair Coelho ativo. Só voa nos seus aviões e está sempre construindo um novo modelo e com outro projeto por começar.Suas obras são personalizadas, mas não é egocêntrico. Abre seus projetos, não faz segredos da técnica, tanto que cedeu o projeto do AC-15 para oito amigos construírem simultaneamente. Sua paixão pelos aviões experimentais levou-o a projetar e adaptar motores de automóvel para baixar o custo da fabricação - um V6 original custa em torno de 65 mil dólares.
E mais, o Guapo -AC-15 - vai ser enviado para a Internet, com todos os detalhes do projeto para quem se interessar possa cloná-lo e construir seu próprio avião.Mas, como todo gênio, Altair Coelho também têm suas idiossincrasias.Jamais usa computador, só a calculadora.Sabe de cor as 48 operações do cálculo de uma longarina das asas, mas esquece o número do telefone.Nunca chega à beira de uma sacada porque detesta altura e refuga passar sobre a prancha de um barco para o cais.Não têm superstições e garante que a ausência de um modelo AC-13 na sua coleção de aviões é mera gozação.
Faz poucas concessões e parece seguir a filosofia do poeta Mário Quintana que garante em verso...

"Que tudo o que atrapalha a minha preguiça, atrapalha meu trabalho".
Deixou de trabalhar na Volkswagem porque tinha que ir a São Paulo.Não vai ao centro de Porto Alegre e não entra em banco há 20 anos. Mora numa das ilhas do Guaíba, mas proíbe que revele o endereço. Não compra roupas - a mulher que faz esse trabalho - ele só compra peças de avião, mas não sabe quanto custou nenhum dos que construiu. "Se fizesse orçamento viraria trabalho e estragaria o meu hobby.Sou aposentado e quando preciso de dinheiro vendo um avião para construir outro", explica Coelho.
É considerado pela agência americana USA-Air uma das cem personalidade mundiais que mais influíram na aviação, mas negou-se a comparecer ao banquete oferecido por George Bush, em Paris, na comemoração do centenário do vôo dos irmãos Wrigth.

"Meu smoking está apertado", brincou.

A grande paixão de Altair Coelho é mesmo pela aviação experimental.Um arrebatamento que ele explica mostrando como essa ciência está à frente da aviação geral. "Com o um motor igual, nós voamos mais do que dobro da velocidade dos aviões convencionais.
Outro exemplo: meu AC-15 tem uma envergadura de asa de 6,25 metros, enquanto um Cesnna, ou mesmo o teco-teco Paulistinha, chega aos 11.
Altair não gosta de falar em acidentes.Levou poucos sustos nas 8 mil horas voadas, entretanto admite que para saber a verdade num acidente, deve-se falar com o piloto no primeiro segundo, ainda tonto, porque no minuto seguinte, ele já tem uma versão conveniente.
A mulher Rosemary há 20 anos não voa mais com Altair.Desde a viajem em que quebrou o cano de escape do avião e a fumaça invadiu a cabine.Noutra ocasião foi dar uma volta num hidroavião anfíbio e tão logo fez a primeira curva o motor tossiu.Logo conclue que não tinha abastecido o avião.Obrigou-se a uma aterrissagem forçada, mas o resultado, além das escoriações, limitou-se a uma "junta homocinética" - que é como Coelho batizou a prótese implantada no fêmur da sua perna direita.

Altair não foi à guerra, mas teve um girocóptero abatido a tiros certeiros na asa e hélice numa fazenda na cidade Dom Pedrito.Tudo porque o capataz não achou graça em ver aquele aparelho esquisito espantar o gado e descarregou o seu revólver calibre 38 no girocóptero.Coelho escapou ileso e o avião foi rebocado por vacas até a cidade.

Perigos mesmo, ele acha que correu durante os seis anos em que competiu nas motos, com uma BMW 650.Sofreu 21 acidentes, a maioria fora das corridas, nas ruas.Mas e mesmo o avião o excita por ser um bicho que nunca é totalmente domado.Bem diferente do automóvel que um dia se consegue botar o pé no fundo, e daí?Por tudo isso o céu é o lugar justo para Altair.
Um nome que em árabe significa pássaro que voa e é a estrela alfa da constelação da Águia.Um achado que ele materializou no leme de todos os seus aviões, estilizado em forma de estrela brilhante."É minha estrela guia", celebra Altair, também chamado de Alt-air, no trocadilho carinhoso dos parceiros de terra e ar.